Fragmentos de mim

28.12.06

Expressão de ideais

Sobre o activismo, tal como ele deveria ser, por Naomi Klein
(20 de Abril de 2003):

"Há 2 anos atrás fui convidada para um encontro num deserto da Austrália Meridional, levado a cabo por um grupo de idosas aborígenes que procurava combater a instalação de uma lixeira de lixo tóxico na sua região. Assim, fui para Coober Pedy na expectativa de ser bombardeada com factos alarmantes sobre os efeitos do despejo de lixo tóxico em terrenos agrícolas, sobre os problemas cancerígenos associados e sobre o tempo de vida da radioactividade na atmosfera. Contudo, isso não aconteceu. Logo após a minha chegada, fui levada para um acampamento por um grupo de jovens ambientalistas vestidos/as como personagens do filme "Mad Max".

Durante cinco noites, dormimos em frente a uma fogueira sob um céu estrelado, num chão avermelhado e fendido. Durante o dia, mostraram-me fontes secretas de água potável, plantas utilizadas na medicina tradicional e rios recônditos onde os cangurus vão beber água. Apesar de toda a beleza, no final do terceiro dia comecei a ficar impaciente. Quando é que começamos então a trabalhar? Perguntei eu a Nina Brown, uma jovem de 22 anos. Ela respondeu-me que as mulheres aborígenes de alguma idade lhe haviam ensinado que antes de se poder combater, há que conhecer o que se pretende defender.

Aprendi duas lições com esta experiência. A primeira foi a que Nina me procurou ensinar: nós, os/as activistas, quer sejamos de organizações de base comunitária, investigadores/as ou teóricos/as, tendemos a saltar de uma atrocidade para outra - sweatshops, venenos, doenças, guerra - até ficarmos rodeados/as de horrores. Gradualmente, as nossas crenças, em vez de terem origem no amor que nutrimos pelas coisas que protegemos ou procuramos construir, começam a emanar de fontes bastante mais perigosas: a raiva e a amargura.

A segunda lição que aprendi foi sobre a importância da orientação. Um activismo político eficaz pode não ser resultado de um processo científico, mas é certamente resultado de uma capacidade que deve ser compartilhada entre as várias gerações e culturas. Ali estava eu, a adquirir sabedoria ancestral com uma mulher oito anos mais nova do que eu. Ela tinha aprendido porque nasceu numa cultura de forte tradição de educação oral e porque um grupo de mulheres de 80 anos tinha, pacientemente, dedicado tempo a ensiná-la.

Definitivamente, nós, os/as activistas - os/as mais novos/as e os/as mais velhos/as - precisamos de orientação tanto prática como filosófica, não só sobre como impedir futuras incursões - à semelhança da que vimos recentemente no Iraque - mas também sobre como desenvolver movimentos eficazes e efectivamente baseados em necessidades reais. Como é que, por exemplo, contrabalançamos a necessidade de combater as atrocidades mundiais com a necessidade de desenvolver alternativas pacíficas? Como é que promovemos uma cooperação internacional universal sem correr o risco de apoiar extremistas religiosos ou nacionalistas? Como é que lidamos com os crescentes ataques ao nosso direito de contestação, que vão desde a detenção em massa de activistas à infiltração nas nossas organizações?

Movimentos que impulsionam uma solidariedade mundial genuína rejeitam declaradamente o autoritarismo e terrorismo e, simultaneamente, promovem a acção directa e uma democracia interna integral. Considerem, por exemplo, grupos como o Movimento dos/as Sem Terra do Brasil, cujos membros cortam arames farpados e ocupam terras abandonadas para cultivo agrícola. Ou o Comité de Crise de energia eléctrica no Soweto, África do Sul, que luta contra os constantes cortes eléctricos e de água reparando canos e cabos estragados. Estes movimentos de "faça você mesmo" emergiram como uma espécie de "terceira via" de activismo, uma alternativa tanto à oposição meramente simbólica das manifestações como ao impulso suicida da resposta armada; neste momento, os membros destes movimentos empenham-se nos seus direitos no mundo direito.

Os/as verdadeiros/as representantes do activismo contemporâneo são pessoas como a jovem americana de 23 anos, Rachel Corrie, que morreu como "escudo humano" ao ser esmagada por um bulldozer na faixa de Gaza durante o mês passado. Corrie não estava nos territórios ocupados para dar apoio aos bombistas suicidas, ela estava lá lá com o Movimento de Solidariedade Internacional, um movimento pacifista, a lutar para que a casa de uma família palestina não fosse demolida.

Também na Argentina, muitos dos/as jovens que lutam contra as políticas neo-liberais que levaram o seu país à falência são filhos de activistas de esquerda que "desapareceram" durante a ditadura militar de 1976-83. Falam abertamente sobre a determinação que têm em continuar a luta política pelo socialismo dos seus pais e mães, adoptando, contudo, métodos diferentes: em vez de atacarem postos de vigilância militares, estabelecem-se em terrenos abandonados e lá constroem as suas casas e padarias; em vez de planearem as suas acções secretamente, organizam reuniões públicas; em vez de defenderem uma ideologia pura, valorizam, acima de tudo, processos de tomada de decisão democráticos. Muitos dos/as activistas mais velhos/as, os/as que tiveram a sorte de sobreviver ao terror dos anos 70, aderiram a estes movimentos e falam entusiasticamente sobre a aprendizagem com pessoas mais novas, sobre a sensação de libertação das prisões ideológicas do passado, sobre terem uma segunda oportunidade para fazerem as coisas bem.

Os/as activistas de hoje reconhecem as limitações das políticas geracionais. Todos nós - novos/as, velhos/as ou de meia-idade - observámos a forma como a exortação dos anos 60 em "não confiar em ninguém com mais de 30 anos" isolou os/as ideólogos/as em idade escolar das suas famílias e comunidades, e sabemos que o facto de se associar a juventude a uma fonte de radicalismo resulta num desperdício de recursos de oposição, numa actividade que dura toda uma vida.

Os/as activistas de hoje não estão a repetir os mesmos erros. O objectivo não é criar um movimento de jovens para jovens. É algo bastante mais ambicioso: um desafio à lógica do capitalismo global propriamente dito, legitimamente multi-nacional, multi-étnico, multi-geracional e multi-classe.

Estudantes do secundário e das universidades estão a desenvolver este movimento lado a lado com os/as veteranos/as dos direitos civis, feministas e movimentos trabalhistas e anti-guerra - pessoas como Howard Zinn, Starhawk, Eduardo Galeano, Vandana Shiva e Tom Hayden, entre outros/as. Estes são alguns dos/as activistas incansáveis cujo papel de líder é reconhecido, não só por já terem sido combatentes mas também por continuarem a lutar nos dias de hoje."